12 dezembro 2025

um chá de...

Num café que a espaços frequento, pedi um chá de Cidreira, que é o único chá que peço e tomo. Não havia. - Como não tem Cidreira? - pensei eu, para logo depois, num raciocínio rápido, enquanto a menina me apresentava as alternativas habituais: Camomila, Verde, Preto, Tília, blá, blá, blá, ainda pûs a hipótese de dizer: - Então quero uma SuperBock!, mas não o fiz. Lembrei-me de Limão, apesar de não ter sido apresentado como alternativo. Muito bem, veio um Chá de Limão, só que não sabia nada a Limão. Aliás, nem sei ao que sabia, pois não me soube a nada em concreto. Só quando já estava a bebê-lo é que me ocorreu o carioca de Limão, que esse sim, sabe mesmo a Limão e eu nunca peço.

(fotografia da embalagem do dito que não sabia a nada, muito menos a Limão)

10 dezembro 2025

música efémera

Ontem, dia 9 de Dezembro, dia chuvoso na Invicta, circulava eu na rua Damião de Góis, parei nos semáforos do cruzamento com a rua Antero de Quental, onde iria virar à direita. Estava portanto na fila da direita das três que aí existem. Seria o terceiro ou quarto carro na fila, quando, olhando para a zona da passadeira, vejo um jovem, alto e bem constituído, com uma máscara cirúrgica na cara, que pára mais ou menos a meio dessa passadeira, vira-se para os automóveis e começa a tocar violino. O meu primeiro instinto foi soltar uma gargalhada, que logo de imediato sustive, pois apesar da surpresa e do inusitado, só uma condição má o poderia motivar ou obrigar a tal desempenho. Certo é que esse rapaz começou a caminhar por entre os carros, sempre a tocar violino e sem pedir nada a ninguém, mas o que aconteceu é que vários automobilistas à minha frente lhe deram dinheiro. Estou habituado, eu diria diariamente, a encontrar gente a actuar nestes momentos fugazes do trânsito... malabaristas, limpadores de vidros, pedintes, palhaços, trapezistas, etc., mas nunca esperaria encontrar um violinista. Eu que por norma não contribuo nesses momentos, pela surpresa e espanto da circunstância, também lhe dei uma moeda.

06 dezembro 2025

a sangria persiste e um mundo desaparece

A notícia é da passada quinta-feira e diz que a VASP, empresa que detém o monopólio da distribuição da imprensa nacional pelo território do país, está a avaliar ajustamentos na distribuição diária de imprensa em oito distritos do interior: Beja, Évora, Portalegre, Castelo Branco, Guarda, Viseu, Vila Real e Bragança. Dito de outra forma, a empresa vai deixar de distribuir a imprensa diariamente nestes distritos já a partir do dia 2 de Janeiro de 2026.
Para além daquilo que já sabemos sobre a situação de maior parte dos títulos nacionais e regionais impressos em papel, esta notícia é, não reveladora porque há muito sabemos, mas a confirmação da profunda desigualdade entre os territórios litorais e os interiores do país, da desestruturação do território nacional e do abandono de qualquer política pública de coesão territorial. São jornais, bem sei, não são ambulâncias, helicópteros, escolas ou tribunais, mas o acesso à informação escrita em suporte papel, por mais banal que possa parecer, é um sintoma da "saúde" de um Estado democrático e de uma cidadania plena e esclarecida.
Para além da possibilidade desta notícia não ser mais do que uma chantagem da empresa para com o Estado, no sentido de uma renegociação de financiamentos (compensações) pelo serviço público prestado, existe aqui uma dramática representação do país real e de como ele é perspectivado a partir do Terreiro do Paço. Ainda que as vendas sejam diminutas ou residuais e não gerem receitas suficientes para pagar a sua distribuição, importa que o Estado garanta a cada cidadão português, esteja onde estiver, o acesso a essa informação em formato jornal e/ou revista impressos. Não tenho a certeza qual será a melhor solução para este problema, mas sei que, por exemplo, os CTT se não tivessem sido privatizados, seriam uma boa solução para a distribuição diária de jornais e revistas pelos pontos de venda em todo o país, nomeadamente por esses territórios interiores e esvaziados.

a grande tensão

A propósito do seu novo livro "O Fim dos Estados Unidos da América", Gonçalo M. Tavares dá uma entrevista à jornalista Isabel Lucas, que foi publicada no suplemento Ípsilon, do jornal Público de ontem, dia 5 de Dezembro de 2025. Sobre este livro com mais de novecentas páginas que o próprio autor define como "tragédia greco-americana", discorre sobre várias ideias e conceitos, paradoxos e distopias da nossa contemporaneidade e sobre futuros possíveis para a nossa espécie. A determinada altura e quando questionado sobre a mediação de mitos, responde assim:

"A questão de ir à Lua era um mito moderno, esta coisa agora de repente de ir a Marte. São mitos com motor e gasolina. O facto de os EUA não terem também uma história mítica por trás, que fundamenta as suas ideias, os seus projectos, faz com que os mitos sejam muito mitos para a frente. A tragédia greco-americana é um pouco isso. Quando falamos em mitos, normalmente, olhamos para trás, nos mitos americanos o olhar é para a frente. Daí nasce um conflito. Mas a grande tensão é entre riqueza e pobreza. Interessava-me pensar sobre até quando pobres e ricos continuarão a ser uma espécie única. Ou seja, biologicamente, a partir de quando a união de uns e outros conseguirá gerar descendência? Aí temos uma nova espécie. Há aqui também uma distopia.
Esta é uma das distopias essenciais do livro, a questão de quando é que vamos achar que está aqui uma separação exagerada. Pensa-se em guerra civil entre dois extremos políticos ou entre duas concepções de mundo, mas pode ser entre duas espécies humanas que se vão formando.
Por outro lado, há pessoas a viver como na Idade Média e outros no cume da tecnologia. Não estamos todos a viver em 2025. Quem não tem Internet ainda não chegou a a 1980. E estas pessoas cruzam-se na rua. O conflito de classe traz o conflito de épocas. É como se os pobres viessem reclamar o direito de entrar no século XXI. Esta é a grande distopia. Quis puxar por isto: ainda não está claro que há aqui um conflito gigante, uma grande guerra civil entre pobres e ricos. É uma guerra civil desproporcionada. É o século XVIII a combater com o século XXI."

(negritos meus)

04 dezembro 2025

aqui e connosco *

Foi no final da década de 70, princípio de oitenta que certos encantos deste nosso recanto o deram a conhecer e depressa o fizeram filho desta terra. 
O Fernando, menino-homem da cidade, lá de longe, da capital, era para aqui que fugia sempre que podia. Adorava a tranquilidade e a paz que aqui encontrava e, na sua simplicidade, deixava-se ficar no fundo do povo, na Campaça de sempre, entre o escano e o pátio.
Escrevo estas linhas em cima do joelho, minutos antes desta cerimónia, porque sei, sabemos, o Fernando é nosso amigo. Eu conheci-o algures no início dos anos 90, com toda a certeza aqui em Vila Boa e quando o Bruno era ainda uma criança. Ao longo de todo este tempo assistimos e partilhámos a vida que o Fernando e a Fátima construíram e o resultado desse primeiro amor, nas lindas Natacha, Matilde e Maria. O Fernando, de trato simples, educado e atencioso, demonstrou ser de cá, ser um de nós, pois muito rapidamente aprendeu a jogar à Belota, se não me engano, com o tio Elias e/ou com os seus cunhados. Por cá não haverá maior prova de pertença à comunidade do que saber-se jogar a esse peculiar jogo.
Neste dia triste, queremos homenagear o Fernando e a sua vida. O nosso Fernando permanecerá aqui e connosco.

* Lido no final da cerimónia religiosa, na igreja paroquial de Vila Boa, dia 3 de Dezembro, do funeral de Fernando Sousa, amigo e também familiar.

21 novembro 2025

a minha paisagem

"Eu era paisagista e as paisagens significavam muito para mim. Nos últimos 40, 50 anos, tenho vivido e escrito romances em locais onde posso ver a paisagem. Actualmente, estou em Nova Iorque, a leccionar em Columbia, e o meu apartamento tem vista para o rio Hudson. O meu apartamento em Istambul também tem vista para a entrada do Bósforo. As paisagens têm um efeito profundo em mim. Estimulam a minha imaginação e fazem-me pensar no mundo em geral. [...] Paisagem é uma palavra-chave para mim. Também a uso como metáfora." (Orhan Pamuk, in Ipsilon - jornal Público, 21 Novembro 2025)

Leio esta passagem de uma entrevista ao Prémio Nobel da Literatura de 2006, o turco Orhan Pamuk, e fico deprimido ou infeliz, não sei bem. Não é inveja das suas paisagens, porque não as desejo, mas sim o profundo desejo de ter para mim uma paisagem que me tranquilize, que me inspire e, principalmente, que me faça ficar, permanecer. A minha paisagem actual é uma bomba de gasolina da BP...

merdificação

Não conhecia a expressão, nunca a ouvira ou lera, mas porque gostei dela, passará a fazer parte do meu léxico. Encontrei-a hoje no Ipsilon do jornal Público, numa peça-entrevista a Cory Doctorow, um activista pela Internet e pelos direitos digitais, autor de vários livros, que passou recentemente por Lisboa, para discursar na Web Summit. Inventou este termo "enshittification" em 2023 e trata-o como uma doença... "um fenómeno em que as plataformas deixam de ter o utilizador como prioridade e passam a focar-se no lucro. Perdem qualidade e entram em decomposição, mas continuam vivas, paradoxalmente". A merdificação é um processo e o autor analisa-o:
"1- Primeiro, as plataformas começam por ser boas e úteis para os utilizadores;
2- Assim que esses utilizadores ficam agarrados, as plataformas abusam dos utilizadores para que sejam mais vantajosas para os seus clientes empresariais;
3- Depois, as plataformas abusam desses clientes para ficarem elas próprias com os lucros;
4- Por fim, transformam-se num monte de merda... passam a oferecer o mínimo possível que seja suficiente para manter os utilizadores colados uns aos outros, e os publishers e anunciantes colados aos utilizadores."
De facto, vivemos tempos de merdificação, e não é só na internet. Vivemos num mundo em que o verbo que se conjuga é merdificar. A merdificação está generalizada e é colectiva, ou seja, andamos a borrar a cara com merda uns aos outros.

desalento, talvez

Chegado a esta idade, e às suas circunstâncias, perscrutando o mundo que me rodeia e reflectindo sobre o estado das "coisas", fico deprimido e com vontade de abdicar da inconformidade e resistência, atitudes em que tenho militado desde que me conheço. Numa simples analogia, sinto que tenho existido em contra-mão daquilo que é o sentido em que a maioria vive.
Durante as mais de três dezenas de anos que levo de activismo, primeiro na dimensão associativa, depois política e, por último, social, não deixei de acreditar, em cada momento, que era possível um outro mundo, uma outra sociedade. Hoje, agora, já não sei se será bem assim. Pode, e espero, ser um estado de alma e algo apenas conjuntural e amanhã voltarei a acreditar num amanhã promissor. No entretanto, e já há cerca de meia-dúzia de anos que a Antropologia é o meu enfoque e será através do seu crivo que manterei a atitude activista possível.
A vontade e o interesse pelo trabalho de campo, pelo mundo rural, associados à paixão pelo território transmontano, tem-me ocupado o tempo e os sentidos. É e será por aqui que vou ficar. Em todo o caso, também sei, em e com consciência, que jamais deixarei de me preocupar por tudo o que diz respeito ao colectivo, à comunidade e ao seu futuro.

19 novembro 2025

o menor esforço impera


Aqui está algo de superlativa importância, mas que não merece a devida, ou qualquer atenção de ninguém. Impressiona a quantidade e variedade de alimentação ultraprocessada disponível nos super e hiper-mercados. Se isso acontece é porque são comprados e consumidos (lei da oferta/procura), beneficiando as grandes empresas e os seus lucros corporativos, e prejudicando em muito a saúde dos indivíduos que, cada vez mais, consomem e fazem deles a sua dieta. Naquilo que é a minha experiência, há muito me apercebi desta realidade e, procurando etnografar, quando dizemos que aqui em casa fazemos puré da forma tradicional (cozer batatas, esmagá-las, juntar leite e manteiga, bater bem até ficar homogéneo,...), até se riem do trabalho e tempo desnecessários, pois há no mercado soluções bem mais fáceis e rápidas de o fazer; com o esparregado a mesma coisa, e com a maionese, e com massas (lasanhas, canelones, etc.). É bem mais fácil ir ao supermercado e comprar as refeições já confeccionadas e prontas a comer. Enfim, o princípio do menor esforço impera, acrescentando valor às grandes empresas globais e acrescentando graves e crónicos problemas de saúde e comorbidades aos consumidores. Excelente artigo, hoje no jornal Público.

17 novembro 2025

vamos LER


Agora que, dizem, vem aí o frio de final de Outono, chegou a revista LER de Verão. Portanto, numa espécie de Verão de São Martinho, temos leitura boa para as horas que aí vêm. Mais vale tarde que nunca, dizem.

13 novembro 2025

Cláudia e Mário

Hoje viajei até ao concelho de Chaves para gravar mais um episódio do meu podcast: "Novas Conversas Rurais". Nada, nem ninguém, me preveniu para a recepção que este casal me dedicou. Simpatia e afectividade, foram de uma amabilidade sem igual. Depois da gravação, e quando a hora de almoço já tinha passado, convidaram-me para almoçar com eles e, num ápice, deram-me a provar várias iguarias criadas pelo Mário e servidas aos clientes que os visitam. Não tenho palavras para descrever tudo aquilo que o meu palato sentiu, mas aquilo que de melhor trouxe comigo, vou guardar e quero aqui registar, foi a dimensão humana que a Claudia e o Mário demonstraram, com simplicidade, empatia e disponibilidade total para me proporcionar um momento único. Adorei conhecê-los, conversar com eles e conhecer o seu projecto de vida. Vou regressar e não vai demorar muito até isso acontecer.

Transcrevo aqui a introdução que escrevi para a nossa conversa...

[ Conheci-os através das palavras de Alexandra Prado Coelho e de uma reportagem que realizou no suplemento Fugas do jornal Público, sobre o paraíso que a Cláudia Campos e Mário Neichel encontraram em Trás-os-Montes, isto depois do desencanto com a cidade, do sonho, da intensa procura pelo local ideal e do caminho que percorreram até aqui chegarem a Redondelo.
Ela, a Cláudia, nada e criada na cidade Invicta, fez o curso de jornalismo na Escola Superior de Jornalismo do Porto, mas rapidamente percebeu... ironia do destino, afirma... que seria na restauração o seu futuro.
Ainda na Invicta abriu dois bares e teve um pequeno restaurante que, às tantas não por acaso, e agora quem usa de ironia sou eu, reminiscências do míster de jornalista, tinha por nome “Sopa de Letras”.
Mais tarde, lá para 2009, ruma a Barcelona para fazer formação de alta cozinha, na prestigiada Escola de Cozinha e de Restauração Hofmann e acaba por ir ficando, procura trabalho e, numa encruzilhada imprevisível, é o pai de Mário que a acolhe e lhe dá trabalho no afamado restaurante Neichel, onde acaba por conhecer Mário...
Este, o Mário, catalão de Barcelona, é formado em Cozinha e iniciou a sua arte no restaurante Neichel, casa familiar, mas foi tendo outras experiências que muito contribuíram para o seu conhecimento e para a sua competência. Entre outras, diz com satisfação, conheceu as cozinhas do Celler can Roca, do Mugaritz, do Martin Berasategui e do Nando Jubany.
Apesar de ter crescido nesses ambientes de alta gastronomia, os quais considera terem sido uma excelente escola, cedo percebeu que o seu futuro não passaria por aí, nem tão pouco pela manutenção do legado familiar, a casa Neichel, acusando e fugindo da pressão e da carga de trabalhos que esse tipo de cozinha acarreta. Depois, sempre presente, a ideia da fuga da cidade e do urbano em busca de um contexto ou ambiente rural, sentindo a terra e estando próximo e em contacto directo com os produtores.
Regressando à tal encruzilhada imprevisível, foi aí que perceberam e reconheceram um no outro as ideias, as vontades e objectivos que afinal partilhavam. Assim, nessa encruzilhada, escolheram um caminho, e regressando às palavras de Alexandra Prado Coelho: “o caminho deles e colocaram a casa e o pequeno Marc às costas e partiram para longe das grandes cidades e para perto de um mundo que já só existe em alguns lugares”. ]

05 novembro 2025

mais cedo que tarde

No dia 29 de Julho publiquei aqui um texto a que dei o nome de "modas e resistências", no qual partilhei a minha percepção sobre a mudança de paradigma na indústria automóvel, de motores a combustão para motores eléctricos e da minha fundamentada resistência a esta nova tecnologia. Terminei esse mesmo texto afirmando que "se tiver que trocar de veículo, algo que mais cedo que tarde vai acontecer, irei permanecer no diesel ou na gasolina."
Pois bem, o mais cedo que tarde aconteceu. Vendi o carro que tinha desde 2013, um Golf Plus, e comprei um novo (semi). Ao contrário do que tinha acontecido na compra anterior, onde não foi propriamente uma escolha, mas sim uma oportunidade de negócio, desta vez a compra foi precedida de reflexão e ponderação sobre qual a melhor opção para a minha/nossa vida.
Depois de algumas visitas a diferentes stands e marcas, de comparações estéticas e financeiras, e debates familiares, acabámos por decidir comprar um Volvo, que fui buscar à JOP Gaia no dia 8 de Outubro. O critério decisivo foi a Andreia o ter considerado, dentro daquilo que era a nossa capacidade financeira, o automóvel mais bonito.
Tenho o Volvo há quase um mês, pouco ando nele, só a espaços e quando somos mais de dois para viajar é que sai da garagem. Nunca tinha comprado um Volvo, mas desde muito novo, talvez desde os vinte anos, me habituei a conduzir essa marca... a empresa em que trabalhei durante praticamente toda a década de noventa do século XX, tinha na sua frota vários Volvos: 440, 460, 850, 850 T5, entre outros. Sempre gostei da Volvo, pois eram bons carros e transmitiam-me fiabilidade e segurança.
Agora tenho um Volvo. Eu gosto do carro e até me sinto confortável dentro dele, mas não consigo, pelo menos por enquanto, libertar-me de um certo incómodo... precisarei eu de tanto carro?
E, tal como já antecipara, a opção eléctrica não foi sequer equacionada.

racismo de inteligência

Sirvo-me do conceito de Pierre Bourdieu "racismo de inteligência" (1978), para me indignar, uma vez mais, com as recentes declarações da ministra da saúde, Ana Paula Martins, sobre a morte de uma mulher migrante, grávida, e do seu recém nascido, num hospital de Lisboa. Ana Paula Martins, acossada, incapaz de dar resposta aos problemas existentes no SNS e impotente perante o mais que aparente descalabro nos serviços hospitalares, revelou-se, outra vez, afirmando algo como...

"Casos como este dizem maioritariamente respeito a grávidas que nunca foram seguidas durante a gravidez, que não têm médico de família... são recém-chegadas a Portugal, com gravidezes adiantadas. São grávidas que não têm dinheiro para ir ao privado, grávidas que algumas vezes nem falam português e que não foram preparadas para chamar o socorro. Por vezes, nem telemóvel têm."

Esta declaração, para além da ofensa descarada à desgraçada que faleceu, é uma expressão clara e sem qualquer dúvida de um verdadeiro sentimento de desprezo e indiferença pelo sofrimento alheio, uma unívoca expressão de racismo de inteligência que tão bem caracteriza o racismo de classe dominante, culpabilizando a condição de pobreza, de ignorância e analfabetismo dos indivíduos pelos seus trágicos destinos. Ou seja, a inaptidão social destes cidadãos, sejam nacionais ou migrantes, condena-os à eterna exclusão social, ao sofrimento e, até, à morte.

27 outubro 2025

caixa de sapatos

"Uma coisa é a casa onde vivemos. Ninguém tem de mexer nela. Outra coisa é a ideia de que temos o direito de ter mais casas do que aquela em que vivemos, como um instrumento para extrair rendimento. Uma segunda casa não é um par de sapatos. Uma primeira casa é mais parecida com um par de sapatos, é essencial. Uma segunda não é. A segunda casa é um investimento e, como todos os investimentos, tem de ser sujeita a regras. Sempre se confundiu a posse de uma casa com a propriedade privada enquanto instrumento de acumulação de capital, e esses conceitos devem ser distinguidos."
(Nuno Travasso e Simone Tulumello, in jornal Público, 27/10/2025)

26 outubro 2025

ao espelho...


Notícia do jornal Mensageiro de Bragança, de 23 de Outubro de 2025.

21 setembro 2025

boda de antanho

Ainda deste Verão, transcrever aqui episódio que partilhei nas redes sociais:

"Ontem, dia 23 de Agosto de 2025, participei como convidado, numa boda peculiar. A sensação foi ter viajado no tempo e ter regressado a um pretérito conhecido. Num pequeno povo da Sanábria, fim de tarde, encontro marcado na casa da família. Grupo de vinte a trinta convidados, caminhámos com os noivos até pequena capela num ermo afastado da povoação, onde nos aguardava à porta o sacerdote. Cerimónia simples e rápida. Descontraídos e depois de esperarmos que o padre fechasse a capela e nos acompanhasse, regressámos à mesma casa... durante este percurso, os noivos que seguiam na frente foram brindados e felicitados pelos habitantes daquela pequena localidade. O copo de água foi servido na rua, numa espécie de continha abrigada, anexa à casa. Ementa farta e variada, confeccionada por mãos amigas. Ambiente tranquilo, acolhedor e muito bem disposto, acompanhado por momentos musicais que alguns convivas foram protagonizando e que se estenderam pela noite dentro. vim de lá, altas horas da noite, feliz e com a sensação de ter vivenciado um momento único, replecto de anacronismo difíceis de encontrar em pleno século XXI."
(Bragança, 24 de Agosto de 2025)

enfim o Outono

No último dia de Verão, o de 2025, quero celebrar a chegada do magnífico, colorido, olfativo e divertido Outono. Mas acima de tudo, importa-me assinalar o alívio pelo fim do Inferno que é sempre o Verão. Com a idade a avançar tenho cada vez menos paciência e tolerância para com os terrores da época estival. Bem sei que é um problema pessoal e intransmissível, mas a alegria de sentir a temperatura a descer, a cacimba alvoral e o vento farto e frontal, dão-me ânimo para os dias que aí vêm. Como que numa transição para os frios e tremores do Inverno, desfrutemos dos prazeres outonais.

campeões mundiais

Nestes tempos em que a reacção saiu definitivamente do armário e perdeu a vergonha ou pudor de se afirmar racista e xenófoba, uma dúvida assalta-me a mente: como se sentirão perante o sucesso desportivo de imigrantes que, com as nossas cores nacionais, vencem tudo e são os melhores do mundo, como aconteceu esta última semana, com as medalhas de ouro de Isaac Nader (filho de um marroquino), nos 1500 metros em Tóquio, e de Pedro Pablo Pichardo (nascido em Cuba), no triplo salto? Vibrarão com estas conquistas e vitórias, ou sentirão desprezo, indiferença e até raiva inconfessáveis? Este seria o momento ideal para os confrontar e questionar publicamente sobre estes factos. Posso estar enganado (não estou), mas a maioria deles acobardar-se-ia e fugiria para o remanso dos seus nichos obtusos e medievais, onde em matilha carpem os seus ódios, e de onde jamais deveriam poder sair.

18 setembro 2025

presentes envenenados

Depois de largos meses ausente, numa manhã desta semana, regressei ao espaço Fórum de uma Fnac, onde há muito gostava de estar e ficar. Para esta manhã levava duas ou três tarefas na mente, sendo que terminar a leitura de um livro de crónicas sobre agricultura era a principal, pois o convite para participar no meu podcast já seguiu para o autor.
Estava eu entretido nessa leitura quando, não muito depois, se sentam três senhoras na mesa ao lado. Eu diria que todas septuagenárias, de boa e cuidada aparência e, pela conversa, adivinho que seriam professoras. Falaram muito e sobre muitas coisas diferentes, mas a minha atenção despertou quando o tema foi a oferta de vouchers de estadias, jantares e actividades várias, concordando as três que esses são péssimos presentes e que, dando exemplos, todas as situações que tiveram correram muito mal. Aí, o meu pensamento e reflexão acompanhou a conversa delas...
A mim, a nós, também já nos ofereceram desses presentes, mas até ao presente não usufruímos de qualquer um deles, nem de qualquer uma dessas experiências. Estarão algures, no fundo de uma gaveta, a perder validade... Aliás, tentei uma ou outra vez fazer reservas em hotéis, servindo-me desses vouchers e nunca consegui. Sei também, por experiência de amigos e familiares, que o tratamento a esses clientes, seja em hotéis ou restaurantes, é sempre negligenciado e, se possível, evitado. Portanto, esses produtos muito bem produzidos e embalados em escaparates, apetecíveis aos sentidos, são sempre presentes envenenados e, por isso, há muito deixei de sequer ponderar ofertá-los.

04 setembro 2025

"depois de casa roubada, trancas à porta"

A tragédia de ontem em Lisboa, com o elevador da Glória, é daqueles episódios ou acontecimentos que, apesar de imprevisíveis, poderiam muito bem ser evitados. Neste dia seguinte, numa atitude bem portuguesa, reflectida na expressão popular que titula este texto, o Presidente da Câmara Municipal, Carlos Moedas, por "prevenção", mandou suspender as operações nos demais elevadores e equipamentos similares da cidade. Claro que ainda muito ruído vai haver, muito se vai dizer e escrever sobre o sucedido, sobre culpas e culpados, mas teremos sempre que esperar pelo fim das investigações para, esperamos e desejamos, haver responsabilização e responsáveis. No entretanto, e porque é algo que, empiricamente, qualquer transeunte, morador, visitante ou turista, pode verificar ao deambular pela cidade de Lisboa, este acidente foi uma consequência dramática daquilo que é a voragem centrífuga do turismo, ou seja, os espaços públicos, as normas e regulamentos municipais, os patrimónios e os transportes públicos, estão cativados pelas dinâmicas e lógicas do turismo. A hegemónica turistificação da cidade obrigou a uma dedicação exclusiva de estruturas e infra-estruturas, uma exigência que testa a capacidade de recursos, equipamentos e de pessoal. Se houve ou não falta de manutenção, se houve ou não negligência técnica, ou mesmo humana, esta tragédia é grave demais para não haver culpados e responsáveis. Que, definitivamente, este horror sirva para memória futura.

03 setembro 2025

diferença

A mais que aparente fragilidade de uma folha de papel em branco supera-se quando nela inscrevemos qualquer diferença, uma ambição ou desejo que seja, para o tempo que há-de vir. Registemos então.

29 agosto 2025

espantado

Quando nos preparamos para regressar à Invicta e a casa, é tempo de reunir (adquirir) o que de novidade local/regional se encontra em escaparate. Aproveito uma ida a Vila Boa, para dar um salto a Vinhais, à Vila e ao seu Posto de Turismo, em busca das últimas edições da Câmara Municipal e de outras publicações sobre a região. Em todo o concelho de Vinhais não existe uma única livraria e, por isso, apenas neste Posto de Turismo ou no Centro Cultural é possível, ainda que à míngua, encontrar algo...
Entrei no Posto de Turismo, por volta das 15 horas, vazio e apenas as duas funcionárias, caras que de longe recordo e reconheço, que com simpatia e atenção me atendem. Digo-lhes ao que vou e sou logo direccionado por uma delas para as estantes onde se encontro todos os livros disponíveis. Aí chegados, essa mesma funcionária, sem aviso prévio ou sem que eu estivesse à espera, pergunta-me: - Então como está a correr o seu podcast? Surpreso e sem saber como lhe responder, agradeci e disse-lhe que sim, estava a correr bem. Mas também reconheci a surpresa da abordagem, pois na verdade não faço a mais mínima ideia do alcance e abrangência desta minha iniciativa.
Escolhi os livros que quis, paguei e despedi-me, agradecendo as suas atenções. Na volta, a mesma funcionária ainda me disse: - Boa sorte para o seu podcast.

25 agosto 2025

recorrência: livros e espaço

"Comprei uma data de livros do Torga, que é um tipo que eu, antigamente, não almoçava para comprar e mandei o Paulocas* ler todos. Nem sequer os abriu. No quarto já não tenho espaço. Não posso ter uma biblioteca no guarda-fato ou numa daquelas arcas ou baús que levam muita coisa, como a do Pessoa. Ou se tem uma biblioteca, em estantes, lombadas bem visíveis ou não se tem. Assim, metidos na arca é uma maçada. Às vezes quero um livro para consultar qualquer coisa e está sempre no fundo da arca, de maneira que quando encontro o raio do livro, já estou tão chateado que já não quero ver nada [...]. A minha biblioteca muda todos os dias: todos os dias vendo, todos os dias compro. Vendo Camilo, compro coboiada. Vocês pensam que leio tudo, que vou a todo o lado? É falso! Não faço vida de Lisboa. Hiberno, faço como o morcego. No Verão, nestes dois meses, vou até à Caparica apanhar um bocado de ar, escrevo um bocado à máquina, porque tenho a janela aberta e não vem frio da rua. Como posso escrever à máquina a abanar-me, a aquecer-me? [...] No Verão passado, cheguei a ter de dia e de noite a ventoinha ligada, a um metro do meu nariz." Luiz Pacheco, "O Uivo do Coiote" (1996)
In "O Prato do Diabo - um Dicionário Pachecal", org. João Pedro George, Língua Morta, 2025, página 45 e 46.

* Paulocas é um dos oito filhos de Luiz Pacheco.

anacronismos

Um destes dias participei, como convidado, numa boda peculiar. A sensação foi ter viajado no tempo e ter regressado a um pretérito conhecido. Num pequeno povo da Sanábria, fim de tarde, encontro marcado na casa da família. Grupo de vinte a trinta convidados, caminhámos com os noivos até pequena capela num ermo afastado da povoação, onde nos aguardava à porta o sacerdote. Cerimónia religiosa simples e rápida. Descontraídos e depois de esperarmos que o padre fechasse a capela e nos acompanhasse, regressámos à mesma casa... durante este percurso, os noivos que seguiam na frente foram brindados e felicitados pelos habitantes daquela pequena localidade. O copo de água foi servido na rua, numa espécie de cortinha abrigada, anexa à casa. Ementa farta e variada, confeccionada por mãos amigas. Ambiente tranquilo, acolhedor e muito bem disposto, acompanhado por momentos musicais que alguns dos convivas foram protagonizando e que se estenderam pela noite dentro. Vim de lá, altas horas da noite, feliz e com a sensação de ter vivenciado um momento único, replecto de anacronismos difíceis de encontrar em pleno século XXI.

08 agosto 2025

preparativos

É sempre com alguma ansiedade e considerável expectativa que organizo a minha "tralha" e me preparo para sair de casa durante períodos longos, como acontece quase sempre no mês de Agosto. Pelo menos três semanas sem vir a casa é tempo considerável e, por isso, tenho sempre que me precaver para não vir a sentir falta de alguma coisa importante. Entre praia e campo ou montanha, as próximas semanas servirão, espero eu, para apenas viver e, sem qualquer constrangimento, fazer aquilo que bem me apetecer. Os bens essenciais estão já acondicionados e a selecção de leituras que pretendo realizar está quase fechada. Nas imagens, aquilo que vou levar comigo para ler, faltando um ou outro item que irei ainda adquirir, aproveitando um pedido da minha filha: "- Pai, preciso que vás à FNAC comprar-me três livros..." Claro, como bom pai que sou, irei com todo o gosto e aproveitarei para saciar também lacunas de última hora. Enfim, resta dizer que a ansiedade e expectativa que inicialmente referi resultarão, com grande probabilidade, em relativa frustração, mas não faz mal. Boas férias.


03 agosto 2025

acontece

"Há um ritual airaniano de escrita?
Não diria que se trata de um ritual. Em todo o caso, é um ritual negativo, que consiste numa resistência quase invencível a começar a escrever todos os dias. Não sou só eu, porque ouvi Manuel Puig dizer que, ao sentar-se à secretária, com a obrigação vocacional e profissional de escrever, começava a organizar papéis, consultar a agenda, afiar o lápis, qualquer tarefa inventada para adiar o momento de escrever. Acontece ao outros, a mim também, mas pior. Posso passar o dia inteiro a hesitar. Depois, uma vez ultrapassado o limiar, tudo é fácil. O difícil foi antes, no vazio. Não é fácil compreender, já que escrever é o que mais gosto no mundo. [...] O curioso é que essa resistência é tanto mais forte quanto mais claro tenho o que quero escrever, quando sei o que vou pôr e as frases já estão a formar-se na minha cabeça... Nesses casos, torna-se mais difícil do que nunca começar, sinto-me inútil, a escrita material torna-se redundante porque o mental é igualmente real. [...]
Quanto aos cafés... têm uma função nessas neuroses divertidas. Se vou a um, com o meu caderno e a caneta, inevitavelmente faço alguma coisa. E eles servem mais do que o isolamento e o hábito. [...] A minha biografia como escritor poderia ser resumida num lento e seguro processo de correcções. Quando era jovem, aparentemente tinha total confiança no meu talento, escrevia depressa e deixava tudo como estava. Depois comecei a duvidar, a corrigir e a corrigir novamente o que tinha corrigido. Agora passei para um estágio superior, já não me basta corrigir: reescrevo. [...]
A leitura tem sido a minha actividade mais constante. Poderia ter sio a única, se eu nunca tivesse resistido ao prazer de escrever. [...] São esse tipo de escritores que, quando os leio, sinto que estou a escrever."

César Aira, escritor argentino, em entrevista a Isabel Lucas, in Ipsilon, Jornal Público, 1 Agosto 2025.

31 julho 2025

autêntico inferno


Vivo nesta casa há quase vinte anos e em cada Verão o desespero é o mesmo, calor, muito calor. Vivo num segundo e último andar de um prédio com apenas seis habitações, sem varandas e com uma exposição solar tremenda. Acresce que, por ser o último andar, temos por cima uma cobertura de telas, alcatrão e cascalho que acumula calor durante todo o dia e o liberta durante toda a noite. Vivo, nos meses de Verão, numa autêntica sauna, com temperaturas médias diárias de cerca de 29 graus (na fotografia a temperatura neste momento, às 11:20 horas...), onde até o chão está quente e nem sequer posso abrir janelas e levantar persianas. O pior é que não consigo encontrar antídotos para este inferno que, lentamente, nos vai cozendo o cérebro e as células. Não sei o que fazer, apenas sair daqui e viver num local fresco e à sombra.